Imagem gerada por IA: Divulgação
ARTIGO
Os artigos e informes publicitários não representam necessariamente a posição de NEO MONDO e são de total responsabilidade de seus autores. Proibido reproduzir o conteúdo sem prévia autorização
Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
Fiz 60 anos recentemente e, desde então, percebi o aumento de comentários encorajadores sobre o meu estado físico e mental, como se fosse necessário esse acréscimo de adjetivos positivos na narrativa da minha vida, nesse momento no qual a tendência da vida é a de ocaso e, em bem menos tempo do que já foi transcorrido até aqui, o fim.
Leia também: Quem define o que é prazeroso para você?
Leia também: Onde paramos de entender?
Acho curioso e, matreiramente, refuto os elogios com a repetição de que “estou velho”, o que provoca esgares de reprovação, olhos revirados e mãos que se juntam em uma quase prece de esconjuro, como se eu tivesse imprecado contra a sabedoria universal, que veda qualquer menção ao vocábulo “velhice”, no sentido de algo que implica o fim inevitável de um caminho. Pois é, implica.
Nestes momentos percebo a falta que faz uma educação para a perda e como essa falta tem contribuído para uma piora geral do estado mental das pessoas. Afinal, vivemos – pelo menos é o que parece – em um tempo no qual precisamos continuar em movimento, produzindo, performando, aparecendo, sem aparentar cansaço ou desestímulo. E, mantra máximo dos coachs que pululam nas redes sociais: “desistir não é uma opção”.
Como não é isso o que acontece – pois esse último terço da vida é marcado pela perda de energia, colágeno, hormônios, musculatura e conexões neurais – tornamo-nos candidatos frenéticos ao estado de ansiedade, que é a incapacidade de aceitar o vazio que se pronuncia nos nossos desejos cotidianos. Acreditamos que viver é estar sempre projetando nossa libido – ou que resta dela – em algum objeto novo e desafiador, e publicar o resultado de nossos esforços, para mostrar que não nos entregamos nunca e que idade é uma coisa que só existe na cabeça das pessoas.
Quanto empenho inútil desperdiçado! Pois então nunca teremos a paz de esticarmos as pernas e simplesmente admirarmos o nada que se extende até perder de vista , com a convicção enfim alcançada de que nunca o ultrapassaremos e tudo o que pode resumir a vida é conquistar um lugar de contemplação razoavelmente confortável e aprazível? Não, dizem os coachs. Não podemos desistir da vida!
Mas nunca somos nós quem desistimos da vida, pelo contrário. Como já lembrava o pensador francês do século XVI, Michel de Montaigne, “viver é aprender a morrer”. Ora, saber que o caminho tem um fim só aumenta o prazer da caminhada, o desejo de usufruir cada detalhe, cada paisagem que vai ficando para trás e que não haverá tempo de revisitar. A pressa é o contrário da satisfação; o ímpeto impede a fruição, como quem faz turismo de quinze dias visitando oito países. Não vê nada, nenhuma coisa, exceto as fotos que mostra pros amigos sem saber direito onde foi tirada.
Tudo o que não dura para sempre exige de nós mais cuidado. Uma refeição especialmente preparada, um encontro há muito desejado e finalmente realizado, valem pelo átimo de tempo no qual acontecem e depois valem pela memória revisitada. Mas o mesmo maravilhoso prato todos os dias, o mesmo encontro todas as horas, ah, quem suportaria ?
Viver é ter a consciência da volatilidade das coisas. Aos 60 anos já não jogo bola, já não faço trilhas, já não vou pescar no Pantanal, já não fico à noite nos botecos, já não exagero na comida, já não faço tantas novas amizades, já não leio livros chatos, já não faço sessões triplas de cinema. Sinto falta dessas coisas? Sim, de quem eu era quando fazia essas coisas. Repeti-las hoje, sendo eu quem eu sou hoje, seria um sofrimento atroz.
Isso não é desistência. Ou melhor, é. Sim, é preciso desistir de muitas coisas porque não nos é mais dado o prazer que elas proporcionavam quando era fácil realiza-las. Mas agora, na velhice, o grande barato é descobrir onde o prazer se encontra, em que forma ele está travestido, de que maneira ele se manifesta. Não arrancará mais gargalhadas altas ou suspiros profundos. O prazer na velhice é plácido e pálido, lento e frugal, vagaroso e tímido, raro e irrepetível. Até que não seja mais nada. E, como Kant, no seu último suspiro de seus 80 anos bem vividos, sonho em dizer: Está bem. E pronto.
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
E-mail: [email protected]
Instagram: @profdanielmedeiros