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ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
Todo mundo, pelo menos uma vez na vida, foi beneficiado pela bondade de alguém. Um favor, uma ajuda, um apoio, um auxílio, um consolo, um sorriso de encorajamento, um abraço reconfortante, um tapinha das costa, uma palavra , um gesto carinhoso naquele momento difícil. Todo mundo tem uma lembrança dessas, e revisita-la é uma das formas mais contundentes de refazer nossa crença na humanidade. A bondade dos outros é um mistério em um mundo pautado pela busca do sucesso individual e da felicidade à qualquer custo. De repente alguém para e lhe dá a vez no elevador, no táxi, na entrada da loja, segurando a porta enquanto você passa sem entender nada. Quando a gente menos espera alguém se esmera em nos explicar aquele itinerário , mesmo quando é visível que a própria pessoa está com pressa. Ano passado eu passeava com a minha esposa em uma calçada de uma rua turística em Milão, apinhada de gente divertindo-se e tirando selfies quando virei meu pé e desabei com meus mais de cem quilos no meio da rua. Por alguns segundo literalmente vi estrelas e temi por algo pior para o meu tornozelo. Mas nem tive tempo de elaborar minhas desgraças porque vi-me cercado de mãos esticadas para me apoiar e vozes em duas ou três línguas perguntando se eu estava bem. Segui o passeio, manquitolando e com um sorriso que não estava ali antes da queda. A bondade dos outros me desconcerta.
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Há muito tempo, em uma rua movimentada em Curitiba, acabou a gasolina do meu carro e tentei fazer uma manobra para encostar, sem sucesso. Saí do carro , tentei empurrar e , ao mesmo tempo, girar o volante para o lado certo. Pelo canto do olho vi um guarda correndo em minha direção. Pensei – como sempre faço, infelizmente – o pior: esse cara não vê que estou em apuros e ainda vem querer me multar? Mas não. Era outro “ataque” de bondade. O guarda postou-se atrás do carro e redirecionou o trânsito enquanto encorajava-me a fazer a manobra com calma até encostar o carro em segurança.
A natureza humana não é boa, mas egoísta, como ensinou Thomas Hobbes. Isso, segundo o filósofo, não é propriamente um mal, apenas um traço da nossa personalidade. Tudo o que é estranho nos assusta e tudo o que diminui nossa chance de sucesso pessoal incomoda-nos. Por isso, diante desses fatos sobre a nossa idiossincrasia, os inúmeros exemplos de bondade gratuita que ocorrem alhures, impregnam o mundo de uma substância tão inexplicável quando encantadora. E não há nada que a explique: origem, grau de instrução, raça, sexo, perfil religioso ou educacional. A bondade , parafraseando Descartes, é a coisa mais comum que existe, pois todo mundo parece ter. Mesmo que nossa percepção geral de tudo seja diferente e sempre mais pessimista do que otimista. Daí duvidarmos se teremos chance de um futuro melhor. A bondade de alguém atrapalha esse raciocínio e suas derivações generalizantes, tão consistentes à primeira vista. Mas quase sempre incorretas.
Há quem diga que só há bondade quando não há riscos. Isto é, como diz o ditado, “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Mas , embora, mais uma vez, esse raciocínio pareça consistente e tentador, a História insiste em desmentir os pessimistas profissionais. É só lembrar, por exemplo, nas ditaduras, ou durante as guerras, quando a civilização diminui a um grau mínimo e, mesmo assim, há quem ponha em risco a segurança e a vida para ajudar os outros. Quando Hannah Arendt ouviu , no julgamento em Israel, a desculpa do nazista Adolf Eichmann, dizendo que não podia fazer nada diferente do que fez, porque estava obedecendo ordens, e se recusasse seria a vida dele que estaria em jogo, ela certamente lembrou das centenas de pessoas que, sem obedecer ordens de ninguém, salvaram a vida de milhares de judeus, arriscando as suas próprias vidas, apenas porque isso lhes parecia o certo a fazer. Sorte, imensa sorte, de quem teve pela frente a bondade de alguém. Dificilmente suportaríamos, como espécie, sem esse traço do caráter humano. Ou, pelo menos, do caráter de muitos de nós.
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
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