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ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
A boa briga é pela cidadania. A cidadania é uma invenção dos gregos e foi, ao longo dos séculos, acrescida de ideias e de processos diversos, até chegar ao modelo constitucional que conhecemos hoje. Nesse modelo, há um Estado cujo propósito fundamental é garantir a dignidade das pessoas sob a sua proteção. Dignidade consiste em respeitar a integridade física e moral das pessoas, além de garantir condições básicas de moradia, saúde, educação, segurança , lazer e esperança. Esperança é uma palavra que não é explicitada nos textos jurídicos, mas permeia toda essa intenção cidadã. Esperança é a possibilidade de poder desejar viver cada vez melhor e saber que isso dependerá de seus esforços. E que não existirão obstáculos exceto os naturais para o desenvolvimento cultural, social e econômico de qualquer pessoa. Isto é, que fatores como gênero, cor da pele, lugar de nascimento, religião não serão impedimentos para o livre desenvolvimento da pessoa protegida pelo Estado cidadão.
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Os gregos, quando inventaram o espaço público, fundaram o conceito de “isegoria”, que é o direito de todos terem voz. A decisão de tornar regra o que cada um diz é da maioria. Essa fórmula exigia uma cidadania letrada, para ser capaz de avaliar adequadamente cada argumento e votar naquele que melhor atenda às exigências do bem comum. Com o passar do tempo e com o declínio de Atenas, essas condições mínimas de avaliação foram sendo minadas e a isegoria tornou-se uma estratégia para interesses de grupos minoritários. Sócrates levantou-se contra esse estado de coisas e tentou alertar os atenienses, pedindo que fizessem uma revisão séria e honesta de suas condições para conhecer e discernir. Reconhecer a ignorância é o primeiro passo para superar o atraso . Os ignorantes não gostaram nada dos alertas do velho filósofo e o condenaram à morte.
Platão, discípulo de Sócrates, enfurecido com o modelo democrático esvaziado de educação cívica que havia condenado o seu mestre, busca uma alternativa e propõe um modelo de governo fundamentado no conhecimento, uma sofocracia, na qual os sábios orientariam a população sobre as decisões a serem tomadas. Ao invés de propor uma reeducação dos cidadãos, Platão acreditou que um grupo de sábios seria capaz de dirigir o povo para o melhor fim. O problema é que , ao mesmo tempo, o filósofo definiu que esse mundo comum no qual vivemos é um mundo falso e que o que deve servir de balizamento para a ação do governante é um modelo de mundo abstrato, perfeito e imutável. Ou seja, um mundo que não existe. O espaço púbico, lugar da ação, no qual a divergência é superada pelo debate das ideias e pela resistência às soluções simples, por meio de uma educação cívica poderosa, ficou definitivamente para trás.
De lá para cá, várias foram as fórmulas tentadas para governar as populações. A mais rica e complexa, porém, continua a ser a da cidadania, na qual as pessoas, imbuídas de interesse público, reservam parte de seu tempo para discutir soluções comuns, buscando preservar seus interesses legítimos mas sem ferir os fundamentos da cidadania, que exige que todas as pessoas sejam livres, alimentadas, com moradia, saúde e educação. A negação desses fundamentos é a declaração de morte da própria cidadania. O uso dos interesses privados como argumento para refrear as posturas do Estado em defesa do interesse público, igualmente, ferem de morte o conceito de democracia.
Essa é a briga boa. Resgatar a ideia de espaço público. Resgatar a ideia de cidadania. E aqui, o desafio maior: educar a nova geração para essa cidadania. Não para o empreendedorismo, nem para as finanças, nem para o sucesso midiático, mas para a cidadania. Não para o identitarismo nem para a família ou para a religião, mas para a cidadania. Não para a luta de classes nem para a alienação individualistas, mas para a cidadania. A boa e velha cidadania.
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
E-mail: danielhortenciodemedeiros@gmail.com
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