POR – MÁRCIO THAMOS ESPECIAL PARA NEO MONDO
Pode às vezes parecer exagero dos linguistas, como se estivessem a valorizar o objeto de seu escrutínio diário, mas, se pensamos na vivência de uma criança em formação, partindo da pré-consciência das coisas que começa a descobrir no mundo em que se vai ela mesma descobrindo, temos de admitir que a língua materna é muito mais do que um simples instrumento de comunicação – ela é uma estrutura social na qual se configura e se desenvolve necessariamente a psique de todo indivíduo, isto é, sua vida mental e emocional. A partir do domínio das palavras, o mundo torna-se pouco a pouco cognoscível, e os sentidos que dele emanam se fazem cada vez mais apreensíveis através da linguagem.
É, sem dúvida, visceral, intensa e pro funda a relação que se estabelece entre o ser e a língua materna. Instrumento sutil e eficiente a promover a interação dos indivíduos em sociedade, é através dela, ou melhor, nela mesma, que as noções e os conceitos mais fundamentais em relação a toda a vida se cristalizam no espírito. É na língua materna que reconhecemos nossa própria identidade. No poema “A língua mãe”, Manoel de Barros nos oferece um belo testemunho desse sentimento de encontro de si mesmo, de seu próprio ser ecoando prazerosamente na intimidade de sua língua:
“Não sinto o mesmo gosto nas palavras:/ oiseau e pássaro./ Embora elas tenham o mesmo sentido./ Será pelo gosto que vem de mãe? de língua mãe?/ Seria porque eu não tenha amor pela língua/ de Flaubert?/ Mas eu tenho./ (Faço este registro/ porque tenho a estupefação/ de não sentir com a mesma riqueza as/ palavras oiseau e pássaro)/ Penso que seja porque a palavra pássaro em/ mim repercute a infância/ E oiseau não repercute./ Penso que a palavra pássaro carrega até hoje/ nela o menino que ia de tarde pra/ debaixo das árvores a ouvir os pássaros./ Nas folhas daquelas árvores não tinha oiseaux/ Só tinha pássaros./ É o que me ocorre sobre língua mãe”.
Pode-se dizer que a língua é o co ração de uma cultura e o estilo de uma nação. Enquanto mantém seu idioma, a coletividade possui um poderoso fator de agregação. Afastando-se de sua língua, uma sociedade tende a se desarraigar, a perder sua unidade natural, e consequentemente a fragmentar-se. Foi o caso do Império Romano com o latim, de onde vem o nosso português.
Segundo contavam os próprios antigos romanos, sua cidade havia sido fundada em 753 a. C. (é claro que eles não diziam “antes de Cristo”), na região centro-oeste da Itália conhecida como Lácio. Com o passar do tempo, enquanto o latim se enriquecia sob a influência de outras culturas mais antigas, principal mente a etrusca e a grega, Roma foi-se tornando uma importante cidade naquela região, mas até meados do IV século a. C. havia expandido pouco suas fronteiras.
No século III, no entanto, já se tornara praticamente dona da parte meridional da Península Itálica e, no século II a. C., após vencer a guerra contra Cartago, der rotando enfim o general africano Aníbal, em 202, a cidade latina criou as condições para dominar todas as terras em torno do Mar Mediterrâneo. Conforme alargavam seu Império, os romanos levavam suas instituições sociais, seus valores e costumes para os novos territórios e impunham o latim como língua oficial entre os povos conquistados, que assim iam pouco a pouco assimilando a cultura dos latinos e se romanizando.
Deve-se dar aqui uma breve explicação a respeito da distinção que se costuma fazer entre “latim clássico” e “latim vulgar”. Com tranqüilidade pode-se entender que o latim clássico é a língua literária, altamente estilizada e lapidada pelos prosadores e poetas sob a influência da cultura grega, que chegou até nós por meio de inúmeras obras cujos registros escritos tiveram a felicidade de superar a ação devoradora dos séculos. Já o chamado latim vulgar (denominação tradicional um tanto imprópria por seu caráter depreciativo) não é senão a língua popular, coloquial e corrente, que abrangia as incontáveis variações da fala cotidiana, e cujo registro é naturalmente escasso.
Penetrando as mais distantes localidades do Império, o latim falado, vale dizer, a língua materna dos antigos romanos, ia tomando os matizes regionais que convinham às populações anexadas, de acordo com o substrato linguístico e cultural que esses povos guardavam como herança de suas tradições mais particulares. Com o passar do tempo, a relativa unidade linguística do Império começa a dissolver-se; e, a partir do século III de nossa era, a cultura geral transforma-se rapidamente. O cristianismo torna-se dominante em relação às religiões politeístas, e um progressivo enfraquecimento político de Roma leva à descentralização do poder do Estado.
No IV século, o vasto domínio é divido entre Império Oriental e Ocidental, e já no século V, o Império Romano do Ocidente, cuja capital permanecia sendo Roma, acaba por ruir inteiramente sob o peso de sucessivas invasões de povos diversos. Todos esses fatos, como se pode bem compreender, contribuíram decisivamente para o aprofunda mento da dialetação do latim. E então, às portas da Idade Média, inicia-se o período do chamado romanço, a língua coloquial intermediária entre o latim dos antigos romanos e as línguas neolatinas ou românicas, isto é, derivadas do latim, que se tornariam os idiomas maternos das futuras nações européias, como o francês, o espanhol, o romeno, o italiano e o português.
Da Península Ibérica, no tempo das Grandes Navegações, o português foi leva do para as diversas regiões conquistadas pelos lusitanos em todo o globo e chegou ao Brasil, com o início da colonização, já no século XVI. Aqui, assim como os romanos faziam em suas antigas colônias, os portugueses impuseram sua língua e seus costumes. As populações indígenas, desde sempre, foram sendo aculturadas; em seguida, grandes levas de escravos vieram da África, e a língua portuguesa aos poucos foi-se aclimatando aos falares tropicais.
Mal se pode avaliar a importância de um país tão grande como o nosso ter um único idioma, sem maiores variações dia letais. A notável coesão nacional de nossa língua materna em seus falares regionais é, sem dúvida, um dos principais fatores que nos permitem perceber quanto o Brasil todo é sempre Brasil mesmo, quero dizer, quanto a identidade histórica, sincrética e singular, desse país se entrelaçou de norte a sul para dar no que deu em cada canto. Por trás de toda a riqueza das diversidades regionais, se entrevê um substrato cultural unificador que faz a gente se sentir em casa, muito à vontade, entre gente de aspecto e hábitos às vezes bem diferentes. Temos aqui uma língua latina com certeza!
* Doutor em Estudos Literários. Professor de Língua e Literatura Latinas junto ao Departamento de Linguística da UNESP-FCL/CAr, credenciado no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da mesma instituição. Coordenador do Grupo de Pesquisa LINCEU – Visões da Antiguidade Clássica.
E-mail: marciothamos@uol.com.br