Artigo
Por – Marina Amaral, Diretora Executiva e Editora da Agência Pública
Um dos momentos mais tensos da CPI da Pandemia foi o depoimento da advogada de médicos da Prevent Senior obrigados a prescrever cloroquina e outros medicamentos para seus pacientes. Lembro que, apesar da admiração que senti, não pude deixar de lamentar a falta de resistência dos médicos ao assédio dos patrões, alinhados ao presidente da República. Isso, claro, com a cumplicidade do Conselho Federal de Medicina, que lavou as mãos. O resultado é que muitos seguiram as ordens e prescreveram os medicamentos, agindo no sentido contrário à ética profissional e à sua própria consciência.
Essa história me veio à mente, por contraste, quando li o abaixo-assinado de mais de 200 jornalistas sobre a publicação do artigo racista e desinformativo de Antonio Risério na Folha de domingo passado. Em um ato admirável não apenas pela coragem, mas sobretudo pela união, os profissionais vieram a público para cobrar coerência e honestidade na linha editorial do jornal. Confesso, morri de orgulho dos colegas.
“A Folha não costuma publicar conteúdos que relativizam o Holocausto, nem dá voz a apologistas da ditadura, terraplanistas e representantes do movimento antivacina. Por que, então, a prática seria outra quando o tema é o racismo no Brasil?”, escreveram os jornalistas. “Se textos como o de Antonio Risério atraem audiência no curto prazo, sua consequência seguinte é minar a credibilidade, que é, e deve ser, o pilar máximo de um jornal como a Folha. Por esses motivos, convidamos a uma reflexão e uma reavaliação sobre a forma como o racismo tem sido abordado na Folha. Acreditamos que buscar audiência às expensas da população negra seja incompatível com estar a serviço da democracia”, finalizaram certeiros.
A resposta da empresa rivalizou em má fé com o texto de Risério. Desde a linha fina, quando contrapôs a crítica ao jornal “que inclui um grupo de jornalistas” (foram 208 jornalistas,16 anônimos, talvez por terem cargos de chefia, que assinaram a carta) à posição da direção “pela liberdade de expressão”, exatamente no momento em que tentava calar seus profissionais.
O texto em defesa do jornal circula entre tentativas maliciosas de endossar o artigo racista mas não tem como escapar da pergunta óbvia: por que os jornalistas não têm o direito de se expressar publicamente em desacordo com a linha editorial, quando a validade do debate e a gravidade da atitude do jornal é tão evidente?
A própria “Folha” diz ter publicado “cerca de dez artigos que refutam a tese de Risério e que o acusam de tentar deslegitimar os avanços obtidos pelo movimento negro”. Gente séria, com conhecimento de causa, como o professor doutor Petrônio Domingues, apontou a inconsistência dos argumentos do antropólogo baiano e seu desserviço para os que lutam por igualdade racial. Ao citar os artigos condenando o artigo de Risério, a Folha busca reforçar sua “pluralidade”, mas acaba por tomar o partido do articulista.“O abaixo-assinado erra ao sugerir que a Folha publicou artigos que relativizam ou fazem apologia do racismo, o que não aconteceu, até porque racismo é crime”, justificou o diretor de redação, Sérgio DÁvila, em um argumento tão risível quanto revelador da onipotência da cúpula do jornal.
O mais grave, porém, é que além de tentar desqualificar duas centenas de colegas sob sua direção, D’Ávila “deixa no ar ameaça de retaliações a quem questiona o ‘projeto’ do veículo”, como destacou, em carta aberta, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo, referindo-se a esse trecho da resposta da direção do jornal:
“O abaixo-assinado é um instrumento legítimo de manifestação dos jornalistas sem cargo de confiança que ali colocaram seu nome. O recurso já foi usado em outros momentos da história da Folha. Também são saudáveis a crítica e a autocrítica, desde sempre estimuladas pelo jornal. O preocupante é o teor do texto, que vai contra um dos pontos basilares e inegociáveis do Projeto Folha: a pluralidade e a defesa intransigente da liberdade de expressão”, disse o diretor de redação (grifos meus).
Qualquer jornalista que tenha trabalhado naquela redação depois do “Projeto Folha” sabe o que isso significa – a começar pelos que quiseram debater a implantação do próprio “projeto”: em 1984, muitos foram demitidos depois da publicação de um abaixo-assinado como esse. Nós não nascemos ontem, Folha.
Celebro a coragem dos colegas, ontem e hoje, e torço para que cada vez mais a gente se una para reivindicar, como também diz o sindicato em sua carta, “o direito ao jornalista de recusar a realização de reportagens que firam o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, violem a sua consciência e contrariem a sua apuração dos fatos”.
Em outras palavras, queremos garantir o direito a ser honesto, aquele mesmo que foi roubado de muitos médicos durante a pandemia. Como eles, mais do que fazer o bem, podemos causar muito mal. Lembram quando Bolsonaro era um candidato “polêmico”?