A resiliência fortalece a cidadania – Imagem: Freepik
ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
No distante dia 26 de junho de 1968 – eu não havia ainda completado 4 anos – cerca de cem mil pessoas saíram pelas ruas do Rio de Janeiro para protestar contra a violência do Estado que, poucos meses antes, havia matado um jovem estudante de 17 anos à queima roupa. Muitos artistas, donas de casas, senhores de terno, além de muitos estudantes da zona sul da cidade participaram do ato, assustados com a truculência da polícia contra eles, contra todo mundo. Curioso é que muita gente que estava ali havia apoiado o golpe que colocara aqueles trogloditas no poder, acreditando que seriam protegidos por eles e esquecendo que quando a gente abre mão da nossa liberdade não dá mais pra exigi-la de volta porque pra exigir algo é preciso ser livre. Enfim, o paradoxo do Estado hobbesiano.
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Foi bonita a festa, pá, mas não serviu de muita coisa. Em dezembro desse mesmo ano, as portas da ditadura fecharam-se de vez para a cidadania, com o Ato 5 e seu baú de maldades cívicas. Jornais censurados, Congresso em recesso, habeas corpus suspenso e todo mundo entrou na categoria de suspeito. A turma que se julgava “do bem” ficou em pânico, desorientada, pois não era para aquilo estar acontecendo com ela. Com ela, não.
Foi preciso uma nova geração , depois de décadas no deserto, para que o grito de “o rei está nu” fosse ouvido e compreendido. O país em frangalhos , depois de muitas tenebrosas transações, voltou , mal e mal, a ser uma Democracia . Vai passar, prometiam-me – eu já com meus vinte e poucos anos – e já com o fardo de contar histórias para crianças e jovens sem passado cívico, filhas de pais que calaram ou sussurraram perfídias ao país na calada da noite, eu acreditando que agora ia, porque o povo tava unido nas ruas, como naquele ano de 1968 que eu só conhecia pelos livros que estudava de dia para dar aula de noite para os jovens marcados pelo mal que a força sempre faz do rejeito da ditadura, uma crise econômica sem precedentes, uma crise de futuro absurda, e a saída era inventar um país novo com urgência e criatividade.
Nos anos oitenta, finalmente o país entendeu e toda a cidade se iluminou. Gente nas ruas – queremos Diretas – gente nas ruas – Muda Brasil – gente nas ruas – defenda a nossa moeda – gente nas ruas – Constituição para todos – gente nas ruas – eleição. Os anos oitenta não tiveram igual, empalidecendo a marcha de 68 e seus 100 mil rastaqueras. Agora éramos milhões.
Mas não serviu para muita coisa. Ganhou o almofadinha que prometia caçar marajás e acabou cassado por corrupção. Assumiu o mineiro de topete cujo nome virara tradução do nosso estado de espírito: Ih -tá -mar!.Haveria fôlego pra mais esperança?
Mas veio a reforma monetária – obras de jovens loucos e inventivos economistas – e o sociólogo respeitável e realista – como um Maquiavel do fim do século XX – ganhou todas as paradas e colocou as contas em dia e já era possível comprar em três vezes sem juros e sonhar em viajar e conhecer a Europa, berço da Democracia, do Estado de Bem Estar, onde não se viam flagelados atacando desesperados armazéns e supermercados e onde não era preciso o outro sociólogo , magrinho na sua doença hereditária, pedindo pra garantir um prato de comida para os brasileiros.
O século acabou e ainda restava esperança – de onde isso, meu Deus! – pra eleger o metalúrgico que prometia garantir almoço e jantar para todos os brasileiros, como se prometesse o impensável. E era, nesse país gestado na sombra da escravidão. E lá fomos pras ruas , eu já casado, com filho e cheio de contas pra pagar que uma vida só não bastava, achando que ainda valia a pena pensar nos que mereciam uma vida tão boa como a minha, mesmo do jeito que tava era um privilégio porque tomava café, almoçava, tomava um lanchinho da tarde e algumas tantas vezes ainda rolava o chopinho do happy hour antes da janta.
O governo distribuía renda mas enredou-se em falcatruas monumentais – coisas da Democracia de coalizão onde era preciso fazer acordos com os diabos e os picaretas – e nosso orgulho ficou opaco com as denúncias que acabaram levando o metalúrgico pra cadeia e a economista que ele colocara no poder em seu lugar perdeu o emprego de presidente. De novo gente nas ruas, gente, muita gente, gritando “o gigante voltou”, sem que ninguém soubesse que raios de gigante era aquele, e era o gigante do atraso, da discriminação, da violência, da incivilidade. Bem que aquele cheiro de ralo já denunciava o que estava por vir. O ressentimento que a Anna Muylaert já havia captado no seu magistral “Que horas ela volta?” estava, ao vivo e em cores, por todas as praças e ruas do país. E imaginar que povo nas ruas também era pra pedir o atraso de volta! E , graças a isso, o ex-capitão, figura de auditório, atração dos talk shows de fim de noite pra espantar o sono e arrancar umas risadas nervosas com sua excrescência, virou o presidente da República. Eu, já entrado nos 50, pensei: Eu quero é que esse canto torto feito faca… daí me calei, envergonhado. Basta um cochilo e a gente fica igual a eles! Calma, logo passa, já passou tanta coisa desde aquela passeata do distante ano de 1968. E sobrevivemos. Sobreviveremos. Mesmo que seja com a outra volta do parafuso, isto é, do metalúrgico, já meio passado, meio metáfora, meio caricatura, mas ainda acreditando: almoço e janta pra todo mundo. Ah, que vida boa!
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
E-mail: danielhortenciodemedeiros@gmail.com
Instagram: @profdanielmedeiros