General. Último presidente militar, João Batista Figueiredo fez muitas declarações polêmicas – Foto: Wagner Berber-18/10/1978 / Agência O Globo
ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
No dia 27 de junho de 1979 , o presidente João Figueiredo mandou ao Congresso Nacional o projeto de anistia. Disse o último general da ditadura: “ Este, senhores Congressistas, o projeto de anistia que, com fundamento no artigo 57, item VI, combinado com o artigo 51 da Constituição Federal, envio à consideração de Vossas Excelências, na convicção de que pratico um ato significativo e profundo, o ato histórico de anistia, com a mesma serena confiança que , na informalidade da vida cotidiana, estendo a mão de todos os brasileiros.”
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A anistia foi aprovada pelo Congresso Nacional em 28 de agosto. Foram anistiados tanto os ingênuos armados que haviam enfrentado o regime militar quanto os que simplesmente haviam feito críticas públicas aos generais. Com a anistia, exilados e banidos voltaram para o Brasil, clandestinos deixaram de se esconder da polícia, réus tiveram os processos em andamento nos tribunais militares arquivados, presos foram libertados de presídios e delegacias. O projeto foi do governo e o Congresso analisou e votou em apenas três semanas.
A anistia , porém, não era irrestrita, deixando de fora quem já tivesse sentença transitada em julgado. Por outro lado, livrava a cara dos militares envolvidos na repressão. Quando o MDB tentou retirar esse item da pauta do projeto, o relator, Ernâni Satyro, da Arena da Paraíba, afirmou: Querem o perdão, mas não perdoam. Gritam pela anistia para os seus, mas apregoam, ao mesmo tempo e incoerentemente, a ideia de uma investigação sobre torturas e violências. Advogam a impunidade dos crimes de seus partidários para que, mais fortes, possam punir a revolução de 1964.
Aprovada, inclusive com o voto do MDB, que concluiu que era melhor essa anistia do que nenhuma, disse o senador Jarbas Passarinho, um dos signatários do AI -5: A anistia marca o fim de um ciclo da Revolução de 64, o fim do ciclo punitivo da Revolução de 64.
Na verdade, a ideia da anistia não partiu do presidente, mas da população. Foi o primeiro movimento popular da abertura política. E teve como liderança uma mulher, Therezinha Zerbini. Nessa época, milhares de brasileiros estavam no exílio e centenas nas cadeias. Sem falar dos que ninguém sabiam onde estavam, desaparecidos nos porões do regime. A ideia da anistia cresceu e foi ganhando eco na sociedade, alertando a cúpula dos militares com um temor que lhes arrepiava a coluna: e se houver revanchismo? E se quiserem apurar os crimes que cometemos? E se chegarem até nós? Assim nasceu o projeto do governo, adiantando-se aos fatos, para garantir impunidade aos torturadores e assassinos. A oposição parlamentar, ainda sem chance de compor maiorias, aceitou o menos melhor do que o nada, e o país pode receber o irmão do Henfil, o Gabeira, o Brizola, o Prestes, o Arraes, o Freire, e tantos outros. Mas teve de aceitar o apagamento da memória pública dos seus algozes.
Pouco tempo depois , já com o MDB transformado em PMDB, disse Ulisses Guimarães: O PMDB carrega os ossos de seus mártires, como os do deputado Rubens Paiva e do jornalista Vladimir Herzog. Carrega-os, não para a vindita, mas porque também os mortos vigiam e governam os vivos.
Profética a alusão do velho timoneiro. Hoje, o sucesso do filme Ainda Estou Aqui evoca a importância de que é preciso punir quem quer suprimir as liberdades, de que é preciso punir quem quer eliminar o Estado de Direito, de que é preciso punir quem apoiou e apoia as ideias dos Brilhantes que cobriram as mãos com o sangue de seus adversários e de muitos inocentes.
A anistia de 1979 foi um arremedo político , com a conivência constrangida dos parlamentares, para dar salvo conduto aos que assaltaram o poder em 1964 e que desafiaram os estatutos básicos da humanidade ao torturar e matar gente presa e desarmada. A escumalha dos porões. Agora, desejam evocar esse episódio e criar similaridades para , mais uma vez, livrar da prisão quem destruiu e ofendeu, quem ameaçou e atacou as instituições democráticas visando, mais uma vez, afundar o país na tirania. E estão certos nessa similaridade. A anistia de 1979, mais do que perdoar os adversários da ditadura, foi a cortina de fumaça perfeita para proteger os torturadores. Agora, mais uma vez, evoca-se o “espírito humanitário” em favor das “velhinhas com Bíblias e donas de casa com batons” para conseguir desimpedir os canalhas defensores da violência contra a Democracia.
Repetiremos a História? Não bastou a Tragédia, embarcaremos na Farsa?
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
E-mail: danielhortenciodemedeiros@gmail.com
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