Imagem aérea de Louisiana, alagada pela passagem do furação Katrina em 2005 – Foto: Reuters
Por – Silvana Salles, Jornal da USP* / Neo Mondo
Intelectual caribenho convida a conhecer as experiências de resistência dos quilombolas nas Américas como um caminho para pensar soluções às crises ambiental e política
À primeira vista, pode parecer estranha a proposição de que tanto a destruição da natureza quanto o racismo compartilham da mesma lógica. Mas, conforme mergulhamos nas páginas do livro Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho, o argumento do pesquisador martinicano Malcom Ferdinand se torna quase óbvio: a modernidade fraturou o mundo entre colonizadores e colonizados, humanidade e natureza, e essa dupla fratura gerou um modo de habitar o planeta no qual tanto seres humanos quanto o meio ambiente são transformados pelos colonizadores em recursos a serem explorados para enriquecer.
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Não faltam exemplos para desenhar o argumento de Ferdinand. Alguns deles são citados no livro, como o desmatamento das ilhas do Caribe, onde, após a chegada de Cristóvão Colombo, em poucas décadas os indígenas foram dizimados e as florestas deram lugar aos latifúndios monocultores, cultivados durante os séculos seguintes pelo trabalho de africanos escravizados. Um processo em tudo semelhante ao que conhecemos na história do Brasil. O autor explica que o que ele chama de “habitar colonial” é “esse modo de habitar onde você planta sempre a mesma planta, a mesma cultura, repetidamente, cana-de-açúcar, algodão, café, e você escraviza pessoas para cultivá-la”.
Malcom Ferdinand cresceu na ilha caribenha de Martinica e formou-se engenheiro ambiental no Reino Unido. Vive na França, onde fez o doutorado em filosofia política na Universidade Paris VII e atualmente é pesquisador do CNRS. Entre os dias 18 e 23 de março, o pesquisador esteve no Brasil em uma breve turnê para promover Uma ecologia decolonial, que por aqui foi publicado em 2022 pela editora Ubu. Além do prefácio da ativista norte-americana Angela Davis, a edição brasileira conta com um posfácio original de Guilherme Moura Fagundes, professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. A reportagem do Jornal da USP aproveitou a ocasião da visita para falar com ambos os pesquisadores, Ferdinand e Fagundes, e entender como o argumento do autor martinicano tem influenciado os debates contemporâneos sobre a crise climática e o racismo ambiental.
A principal contribuição de Malcom Ferdinand neste debate consiste em nos fornecer uma abordagem original para análise da intersecção entre as dinâmicas ambientais e coloniais da crise climática. Ele faz isso a partir de uma ferramenta metodológica intitulada de ‘a dupla fratura colonial e ambiental da modernidade’, que se presta tanto como diagnóstico da crise quanto meio para sua superação”, afirma Fagundes. “Assim, a principal contribuição de seu livro consiste em reconhecer que o fundamento lógico da subjugação da terra encontra-se na subjugação das pessoas, e vice-versa. Com efeito, a luta antirracista se mostra como luta ecológica, ao passo que a conservação ambiental torna-se um ato de justiça social”, completa o professor da FFLCH.
O problema do ambientalista que não reconhece o saber tradicional
Além de denunciar o legado do colonialismo, o autor martinicano valoriza a estratégia de aquilombamento dos africanos nas Américas e de seus descendentes como parte da caixa de ferramentas que temos para enfrentar a mudança climática e a crise política. “Os quilombos, ou como são chamadas no Caribe, as comunidades que fazem a marronagem, não apenas recusaram o sistema social e político injusto da escravidão, mas recusaram, rejeitaram essa habitação colonial, inventando outros modos de se relacionar com a terra, outras práticas com mais combinações, com mais misturas, com uma produção organizada para soberania alimentar, saúde, proteção e práticas espirituais”, diz Ferdinand.
Essas contribuições dos africanos e afrodescendentes são pouco reconhecidas, inclusive entre acadêmicos e ambientalistas. Tanto Ferdinand quanto Fagundes destacam que a ausência de pessoas não brancas nos ambientes onde são debatidos os conceitos e formulados os discursos sobre a emergência climática são sintomáticos da “dupla fratura da modernidade”, pois algumas pessoas ainda consideram que clima e racismo, ecologia e colonialidade, são assuntos que não devem ser misturados. O prólogo de Uma ecologia decolonial começa justamente com o alerta de que as comunidades antirracista e ecologista dialogam muito pouco entre si.
“Não é uma questão de saber ou não. É uma questão de relação de poder. Algumas pessoas que têm o poder decidem explicitamente excluir certos conceitos ou ideias e práticas. E isso cria uma situação muito, muito interessante, por exemplo, na França. Você tem pessoas que têm uma boa opinião sobre si mesmas, que acham que o que Trump está fazendo é muito ruim. Mas o que Trump está fazendo é remover o que eles chamam de DEI, ou seja, políticas de diversidade, equidade e inclusão. E assim, eles querem criticar Trump, mas não necessariamente se envolver com o antirracismo e práticas antirracistas. Então, há um pouco de contradição”, afirma o filósofo.
Ferdinand conta que foi estudar filosofia política depois de uma experiência de trabalho humanitário em Darfur, no Sudão. “Eu estava lá como responsável por água e saneamento, como engenheiro hídrico. E percebi que, como engenheiro, não fui treinado para ‘definir a questão’. Fui treinado para ‘responder à questão’ que me foi apresentada, mas não para defini-la. Então, percebi que com as ferramentas que adquiri com a formação em engenharia civil e ambiental, eu poderia fazer algumas coisas. Mas quando o problema é político, uma solução técnica não vai resolvê-lo”, reflete.
Desde então, ele tem se dedicado a pesquisar a interação entre o colonialismo e os problemas ambientais, colocando o Caribe no centro de suas análises. Seu tema de pesquisa tem muito a ver com o de Fagundes, apesar dos dois atuarem em campos do conhecimento e geografias diferentes. Antropólogo ambiental e das técnicas, o professor da FFLCH adotou como base de seu atual programa de pesquisas “a proposição de que restaurar ecossistemas e reparar sociedades são duas faces de um mesmo gesto contrário ao legado colonial das nossas instituições ambientais”. O docente conta que, nos últimos dez anos, tem realizado pesquisas e colaborações audiovisuais com comunidades quilombolas, gestores ambientais e brigadistas do Cerrado, tratando do tema da emergência da política de manejo integrado do fogo no Brasil.
“O modo como o manejo do fogo tem sido pensado e gerido pela conservação ambiental brasileira é um caso privilegiado para abordar o conceito de ‘dupla fratura colonial e ambiental’. Isso porque, de um lado, a área científica que se convencionou chamar de ecologia do fogo se acomodou em estudos baseados exclusivamente em parcelas de controle que não consideram os valores técnicos – isto é, socioculturais – que orientam os saberes e práticas de queima dos povos e comunidades tradicionais. Por outro lado, apenas muito recentemente os movimentos socioambientais organizados no Brasil passaram a reivindicar e vocalizar a restauração dos usos tradicionais do fogo no interior do repertório de luta dos povos indígenas, quilombolas e comunidades locais”, diz Fagundes.
Superando o habitar colonial
Uma ecologia decolonial foi recebido com grande interesse tanto na França, onde foi publicado em 2019, quanto no Brasil. Por um lado, a publicação rendeu a Malcom Ferdinand o prestigioso prêmio da Fondation de l’Ecologie Politique (Fundação de Ecologia Política, uma organização de interesse público fundada em 2012 pelo partido francês Les Écologistes). Por outro lado, também acabou atraindo sobre o autor a ira da extrema direita francesa, que o acusou de fragmentar a unidade da república com sua crítica ambiental racializada.
“Mas o negacionismo acerca da atualidade da raça e do racismo, tanto à esquerda quanto à direita do espectro político, não é exclusividade francesa. Não à toa, mesmo no Brasil a proposição de ‘uma ecologia decolonial’ também gerou reações interessantes. Setores acadêmicos vinculados à ecologia política – majoritariamente brancos – chegaram a alegar que a tradição brasileira chamada de ‘socioambientalismo’ já teria cumprido há décadas o desafio de articular a crise ecológica com as desigualdades sociais. Apesar de que, note-se, esta tradição tenha sido bastante tímida em sua incorporação dos estudos étnico-raciais e de toda a contribuição afro-americana do pensamento negro e antirracista”, comenta Fagundes.
O professor da USP destaca que o maior e mais promissor impacto do livro Uma ecologia decolonial no Brasil tem sido sua rápida assimilação pela juventude racializada que chegou às universidades na última década a partir das políticas de ação afirmativa. Paralelamente, o livro tem sido adotado por programas de pós-graduação e mencionado em discursos de importantes ativistas da questão racial e ambiental.
“De imediato, o trabalho de Malcom constrange quem insiste em pensar e atuar genericamente em favor da ‘natureza’ sem incluir nela os processos coloniais de racialização vinculados aos humanos e não humanos – incluindo aqui a própria terra. Nada mais apropriado para tratar disso que a realidade brasileira, gestada pelas virtudes e pelos dilemas de ser o maior centro de biodiversidade do planeta, mas que foi o principal destino daquilo que hoje podemos reconhecer como sendo o maior genocídio da história da humanidade, que foi o Holocausto Negro nas Américas”, afirma Fagundes.
Questionado pelo Jornal da USP se, afinal, é possível superar o habitar colonial, Malcom Ferdinand responde:
“Sim, claro que é. Esse é o poder dos quilombos. Eles demonstraram que é possível. Mas, também, o poder da habitação colonial na história da humanidade é uma experiência pequena, 500 anos em mais de milhares de anos de existência na Terra. Não devemos pensar que o que vemos hoje é o que sempre foi e o que será. A ideia de que é possível fazer de forma diferente é uma das coisas mais importantes e poderosas que os quilombos fizeram”.
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado.