Pesquisa inédita revela que 84% das pessoas pretas já sofreram discriminação racial no cotidiano. Os dados expõem feridas abertas da nossa estrutura social — e clamam por políticas públicas interseccionais e reparadoras
Ser seguido em uma loja. Receber um atendimento pior que o da pessoa ao lado. Ser olhado com desconfiança. Para milhões de brasileiros, essas não são situações isoladas — são marcas diárias de uma desigualdade que persiste e se renova, silenciosa e devastadora.
Pela primeira vez, uma pesquisa nacional mediu como os brasileiros percebem e vivem a discriminação no cotidiano. Os resultados, divulgados pelo programa Mais Dados Mais Saúde — uma iniciativa da Vital Strategies e da Umane, com suporte técnico da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e apoio do Ministério da Igualdade Racial — revelam o que a experiência de ser negro no Brasil já gritava: a cor da pele ainda determina o valor e o respeito que se recebe.
A pesquisa aplicou a Escala de Discriminação Cotidiana a 2.458 pessoas de todas as regiões do país, entre agosto e setembro de 2024. Os dados, ponderados a partir do Censo 2022 e da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, revelam que 84% das pessoas pretas entrevistadas relataram já ter sido vítimas de discriminação racial. Entre mulheres pretas, a violência se intensifica: 72% afirmaram sofrer múltiplas formas de discriminação, onde raça, gênero, aparência e classe se sobrepõem como camadas de exclusão.
Uma desigualdade que tem cor — e consequências
Os números falam por si:
57% das pessoas pretas afirmam receber atendimento pior, contra 28,6% das pardas e apenas 7,7% das brancas.
21,3% das pessoas pretas disseram já ter sido seguidas em lojas, ante 8,5% entre brancos.
16,6% das pessoas pretas relatam ser vistas como desonestas, enquanto o índice entre brancos é de apenas 5,9%.
Segundo Janaína Calu, consultora de equidade racial e saúde da Vital Strategies, é fundamental enxergar essas experiências sob o prisma da interseccionalidade.
“As pessoas ocupam múltiplas posições socialmente desfavorecidas que interagem entre si. Uma mulher preta, por exemplo, carrega não apenas a marca do racismo, mas também do machismo, do preconceito de classe e, muitas vezes, da gordofobia ou capacitismo.”
Discriminação é questão de saúde pública – Foto: Divulgação/Freepik
Quando a violência cotidiana adoece
Discriminação não é apenas injustiça social — é também questão de saúde pública. Estudos já demonstram que vivências constantes de discriminação estão diretamente ligadas ao aumento de casos de ansiedade, depressão, hipertensão e doenças crônicas. Para Pedro de Paula, diretor-executivo da Vital Strategies,
“Gerar evidências sobre a discriminação é essencial para que o SUS incorpore esses dados na formulação de políticas públicas. Isso significa ampliar o olhar sobre os determinantes sociais da saúde e combater desigualdades estruturais na raiz.”
O racismo estrutural não se combate com discursos
A pesquisa reforça uma verdade incômoda: o racismo no Brasil não é exceção, é estrutura. Como lembra Layla Pedreira Carvalho, diretora de Políticas de Ações Afirmativas do Ministério da Igualdade Racial,
“Não há solução única para o racismo institucional. É preciso monitorar práticas discriminatórias em todas as esferas — da saúde à segurança, do trabalho ao consumo. A pesquisa é uma ferramenta potente para fundamentar e acelerar políticas públicas antirracistas.”
Plataforma pela equidade racial e saúde
A divulgação dos dados marca também o lançamento da plataforma “Equidade Racial e Saúde”, desenvolvida em parceria entre o Ministério da Igualdade Racial, a Vital Strategies e o Instituto Ibirapitanga. A ideia é oferecer um repositório dinâmico de estudos, evidências e recomendações para formular políticas mais equitativas e informadas por dados reais — e não apenas por boas intenções.
É difícil ignorar a contundência dos dados. Mais difícil ainda é seguir como se eles não nos atravessassem. O que essa pesquisa escancara não é apenas uma estatística: é o retrato vivo de um país que ainda precisa se olhar no espelho e escolher ser melhor. Mais do que indignação, precisamos de ação — institucional, coletiva e cotidiana. Porque um país onde a cor da pele define o tratamento é um país que ainda não entendeu o verdadeiro significado de igualdade.
A mudança começa quando reconhecemos o problema — e agimos com coragem para superá-lo.