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ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
Conta-se que o filósofo Epicuro sofria de uma grave doença nos rins. Mesmo assim – ou até por causa disso – ensinava aos seus discípulos a importância de uma vida que não escolhesse a dor, exceto se fosse para evitar uma dor maior. Fora isso, o propósito da vida deveria ser o prazer, a alegria, a satisfação. Dias perfeitos, vai traduzir essa ideia no cinema o diretor alemão Wim Wenders, em filme de rara felicidade. A busca pelo prazer não é uma fuga dos problemas, nem uma alienação do mundo, mas uma escolha do possível diante de um universo insensível e sem sentido. Minha Razão não pode transformar o mundo, mas pode determinar o que está ao meu alcance escolher. E a minha escolha deve ser pautada pela rubrica “satisfação”.
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Epicuro viveu no período helenístico, quando a cidade de Atenas já havia sido submetida pelos macedônicos e transformada em apenas mais uma das centenas de cidades do grande império de Alexandre. Logo, não havia mais polis, nem havia cidadão grego, nem havia mais ágora, nem havia mais debates públicos e decisões pela maioria. A elite ateniense andava falando de lado e olhando pro chão, perguntando-se: “e agora, o que fazer?”. Epicuro tinha uma resposta: viver o mais satisfatoriamente possível, longe da dor, um dia de cada vez. Se não havia mais ágora, havia o jardim das casas, para reunir os que quisessem aparecer, mulheres, crianças, escravos, sem mais discriminações; se não havia mais as grandes decisões, havia a conversa descontraída e desinteressada, os bate-papos infindáveis em volta de uma mesa, com um bom vinho e uma boa comida, ou o que cada um desejasse comer ou beber; se não havia mais o cidadão, havia o amigo, a quem trocar as confidências e repartir as alegrias. Eis a receita para a Felicidade, a Eudaimonia particular do filósofo.
Mas nem todos compreendiam plenamente o que ele defendia. Certa vez, um discípulo mais jovem, daqueles entusiastas que decoram as falas do mestre e as seguem sem reflexão, trouxe para Epicuro uma fatia de bolo e um chá de ervas. O pensador samiano agradeceu a gentileza, colocou o bolo sobre a mesa e levou o chá aos lábios, sorvendo-o calmamente. O discípulo ficou fitando o mestre por algum tempo e, sem se conter – na sua ânsia de juventude – perguntou-lhe: mestre, não entendo. O senhor vive dizendo para todos os que vêm na sua casa, nesses jardins que a cercam, que o importante é buscar o prazer e viver para o prazer. Eu trouxe-lhe um pedaço de bolo do mais puro mel e das mais suculentas frutas e o senhor fica aí, com esse ar de alegria, bebendo do chá de ervas que trincam os dentes de tanto amargor?
Epicuro teria então respondido: mas eu estou buscando o Prazer, meu caro e jovem amigo. O bolo, se eu lhe der um mordida , sentirei, na hora, uma imensa satisfação, mas depois, por horas, talvez até por dias, sofrerei no meu corpo os efeitos dele; já o chá, na hora que ele toca meus lábios, meu rosto se constrange e forma uma careta , mas depois, no resto do dia, sentirei os efeitos benéficos de tê-lo bebido. Logo, estou fazendo opções que têm como objetivo aumentar o prazer da minha vida, desse dia , do dia de amanhã, dos dias que ainda tiver por aqui.
A Filosofia nesses tempos tinha uma clara dimensão ética e estética. Voltava-se para a grande questão humana que é a boa vida: como torna-la mais satisfatória, compreendendo que somos, em boa parte da nossa existência, responsáveis pelos nossos atos e que não há deuses a nos guiar como um jogo de marionetes. Desde Tales de Mileto, que viveu cerca de 250 anos antes de Epicuro, já era sabido que a Natureza não olha por nós, não determina o que seremos, não interfere nos nossos destinos. Pelo contrário, nós que, conhecendo a Natureza, podemos interferir nela e , dentro de alguns limites, reverte-la em nosso favor. Por isso, dizia Epicuro, não é preciso temer os “deuses”, pois eles estão mais preocupados em viver a própria felicidade. Nós é que temos que lutar pela nossa. E nossa “arma”, é o discernimento, a escolha racional.
Assim, quem define o que é prazeroso para você? Epicuro não hesitaria em responder: sua razão abalizada. Ninguém mais, nenhuma moda, nenhum aplicativo, nenhum evento passageiro, nenhuma imposição da maioria, nenhum comando digital, nenhuma imagem de sucesso, nenhuma ameaça de repúdio ou discriminação. Você, só você. Mesmo que , à princípio, o efeito dessa decisão seja amargo como um gole de chá de ervas. Mas pense na satisfação do resto do dia. E aproveite.