Cena do filme ‘AINDA ESTOU AQUI” – Foto: Divulgação
POR – FABIO ALPEROWITCH
A eventual vitória de Ainda Estou Aqui no Oscar seria um marco na luta contra o apagamento histórico e suas consequências no presente. O filme, que retrata os traumas da ditadura, resgata uma verdade frequentemente silenciada e reforça a importância da história como ferramenta de transformação. Mas a disputa pela memória não é uma questão do passado – ela tem implicações diretas no presente e no futuro. O negacionismo histórico que relativiza ou apaga os crimes da ditadura se conecta diretamente com outras formas de negação, como o descrédito à crise climática e a defesa de políticas que colocam o lucro imediato acima da sobrevivência das futuras gerações.
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O Oscar, em tempos de retrocesso, se tornaria um ato subversivo. A extrema direita, com sua retórica anti-DEI, rejeita narrativas que deem voz às populações marginalizadas. Premiar um filme do Sul Global, em português, sobre uma mulher que enfrenta o poder, é um contragolpe: uma afirmação de que as minorias – as mesmas atacadas por políticas excludentes – são a base de uma sociedade sustentável.
A relação entre memória e sustentabilidade pode parecer abstrata à primeira vista, mas é, na verdade, essencial para compreendermos os desafios contemporâneos. O que está em jogo não é apenas o direito de lembrar, mas a própria capacidade da sociedade de construir um futuro baseado em fatos, responsabilidade e justiça. Quando se relativiza a violência de um regime autoritário, abre-se caminho para a normalização de outras formas de violência – seja contra grupos sociais marginalizados, seja contra o meio ambiente. O passado não é um arquivo morto, mas um território em disputa, e quem controla sua narrativa muitas vezes determina as direções do futuro.
Num mundo onde o ódio ganha eleições, Ainda Estou Aqui é resistência. A extrema direita aposta no esquecimento, na ideia de que o passado não importa e as minorias são descartáveis. Eunice prova o contrário: lembrar é lutar, e lutar é sustentar – seja uma família, uma história ou um ecossistema. O Oscar poderia tornar esse “ainda estou aqui” um grito global, um lembrete de que a sustentabilidade depende de quem resiste às trevas: os povos da floresta, as vozes silenciadas, os que não se curvam.
O discurso da negação sempre se constrói com as mesmas ferramentas: relativização, revisionismo e a criação de falsas equivalências. No caso da ditadura, isso se manifesta na ideia de que os excessos cometidos foram necessários para evitar um mal maior, ou que o período trouxe avanços que compensariam os abusos cometidos. No caso da crise climática, a negação assume a forma da desinformação, da tentativa de desacreditar o consenso científico e da insistência em narrativas que reduzem a questão ambiental a um suposto alarmismo exagerado.
Não há ilusão de que um prêmio mude o curso da história. A extrema direita seguirá atacando a diversidade e as minorias continuarão sob pressão. Mas Ainda Estou Aqui no topo seria um momento de clareza: a prova de que a sociedade só sobrevive se enfrentar seus demônios, passados e presentes. O cinema tem o poder de tornar o passado palpável, de transformar estatísticas em histórias humanas e de provocar reflexões que discursos políticos ou acadêmicos muitas vezes não conseguem alcançar. Quando um filme sobre a ditadura é projetado na maior vitrine do cinema mundial, ele reforça que essa história ainda precisa ser contada – e, mais importante, compreendida.
A disputa pela memória tem efeitos concretos na forma como a sociedade enxerga seus desafios. Quando crimes do passado são negados ou minimizados, abre-se espaço para que novas violações sejam cometidas sem resistência. Se uma sociedade aceita que a tortura e a censura podem ser relativizadas, o que impede que também aceite a destruição de biomas inteiros como um efeito colateral aceitável do desenvolvimento? Se um país não se responsabiliza pelos erros de sua história, como pode esperar agir de forma ética e responsável diante dos desafios do presente?
O apagamento da memória cria um ambiente propício para a repetição de erros, pois sem a compreensão do passado, não há aprendizado nem compromisso com a mudança. Tanto o enfrentamento da crise climática quanto a preservação da memória exigem resiliência contra discursos revisionistas, compromisso com a ciência e a capacidade de reconhecer que o passado não pode ser descartado sem consequências.
Se Ainda Estou Aqui levar o Oscar, isso representará mais do que uma vitória do cinema. Será um símbolo de que a sociedade não aceita mais que a história seja distorcida para servir aos interesses do presente. A memória é um compromisso com a verdade – e sem verdade, não há futuro possível.
Investidor, ambientalista e ativista, comprometido em causar impacto positivo no mundo através de investimentos sustentáveis. Casado e pai de cinco filhos, fundei a fama re.capital em 1993, quando tinha apenas 21 anos, estabelecendo um caminho pioneiro no campo dos investimentos responsáveis. Além da minha carreira na fama re.capital, fundei quatro ONGs dedicadas a diversas causas sociais e ambientais. Atualmente, tenho o privilégio de servir no conselho de várias organizações proeminentes, incluindo a WWF Brasil, Instituto Ethos e o Pacto pela Equidade Racial, onde continuo a promover a sustentabilidade e a equidade. Fui honrado ao ser selecionado entre os 99 melhores investidores do mundo na publicação “The World’s 99 Greatest Investors”.