Eunice Paiva em 1996 exibindo o atestado de óbito de Rubens Paiva, 25 anos após da morte dele — Foto: Sérgio Andrade
ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
O escritor e ativista espanhol Jorge Semprum, que foi prisioneiro em um campo de concentração durante a segunda guerra, disse que há experiências que não são apenas “indizíveis”, mas “invivíveis”. Por isso, somente pelo filtro da narrativa ficcional podem ser contadas. Todo o horror do holocausto atingiu o grande público e provocou a reflexão urgente e necessária não por meio dos depoimentos ou dos documentários – apesar da importância fundamental deles – mas de filmes como A Lista de Schindler ou o mais recente Zona de Interesse. A arte existe porque a vida não basta, disse o grande poeta Ferreira Gullar. Ele conta que um dia, indo para o trabalho, distraído com uma série de pequenas tormentas domésticas foi abordado por um casal que o reconheceu e o cumprimentou. Seguindo sua trajetória, começou a pensar: quem sou eu, afinal? O artista que é parado na rua ou o pequeno burguês engolido pelas preocupações cotidianas? Um ou outro? Um e outro? Uma parte de um, uma parte de outro? No elevador do prédio do trabalho, o primeiro verso surgiu na sua mente: Uma parte de mim é todo mundo, outra parte é ninguém, fundo sem fundo. E logo, estava pronto o poema magistral, Traduzir-se.
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Karen Blixen, a escritora dinamarquesa conhecida pelo pseudônimo de Isak Dinesen disse certa vez: Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história. Uma história narrada tem o poder de transformar o acontecimento em uma experiência compartilhada, apropriada por quem lê ,ouve ou vê, dimensionada em face de nossas próprias vivências e, dessa forma, pode salvar vidas. Não será mais apenas a história de uma pessoa, mas a narrativa de sua resistência, ou de sua capitulação, ou de seus medos, ou da sua coragem, ou de suas lágrimas, ou de seu sorriso que impregna minha própria história e ajuda a dar-lhe forma. Sei que não estou só quando alguém divide sua vivência comigo, quando alguém revela seus temores e suas dúvidas, quando alguém expõe uma faceta de humanidade da qual eu pensava, tolamente, ser o único a protagonizar.
O sucesso do filme de Walter Salles, nosso primeiro Oscar, está na capacidade que o diretor teve de traduzir uma tragédia familiar em uma narrativa capaz de ser reconhecida por tantos que viveram tragédias parecidas e por tantos que, mesmo sem vive-las, temem o espectro da perda de alguém querido, a perda para a brutalidade da vida social distorcida pelas ideologias autoritárias, ou simplesmente pela violência da pobreza e da ignorância, da maldade ancestral, da insensibilidade pelo universo íntimo precioso de cada um. Uma história que se fosse apresentada como panfleto não teria o mesmo efeito. Nem se fosse apresentada como denúncia. Ou como isca para o vale de lágrimas. O sucesso do filme se deve a esta transformação da aridez da vida e suas vicissitudes em arte, nesse caleidoscópio de pequenas emoções cotidianas que se organizam ao som de um disco na vitrola, de uma dança animada na sala de estar, na leitura de uma carta contando delícias de uma viagem. E também nas grandes emoções contidas, no olhar vidrado no nada segurando a avalanche interna, porque toda dor verdadeira é íntima, forma um mapa pessoal e indecifrável na alma de quem sofre, sem nenhuma necessidade de cornetas ou tambores de anunciação. Para os algozes, para os titulares do sofrimento, o sorriso é a expressão da resiliência do bambu ao temporal. O abraço nas crianças e a presença dos amigos são as únicas fortalezas possíveis. E a certeza de que a vida deve prosseguir e que a única revanche é jogar poesia na cara dos patetas. Como o momento do filme no qual Eunice, finalmente com o atestado de óbito reconhecendo o marido como vítima de assassinato pelo regime abjeto, abraçou o general que estava ao seu lado. A vingança perfeita: para o abismo do invivível, o calor terno do abraço humano. A cara do general é a síntese da vitória desejada. A arte refazendo a vida e tornando-a digna, outra vez.
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
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