“Bobbie Goods”, livros para colorir, com imagens “fofas” de ursos, cachorros, gatos etc – Imagem gerada por IA – Foto: Divulgação/Freepik
ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
A nova moda é consumir o tempo com ações repetidas, sem assumir responsabilidades e sem ter de dividir nada com ninguém. As academias ficam cheias, dia e noite, e os filhos esquecidos nas escolas ou entulhados de atividades extras. Alguns casais já pularam essa etapa e adotaram filhos que não pensam nem reagem: os tais bebês reborns. Sucesso. Isso sem falar do mercado de pets, nas alturas — quase na mesma proporção dos cães abandonados nas praias e estradas, quando os donos “não se adaptam a eles”.
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Ao mesmo tempo em que a ciência ampliou o tempo de vida útil do ser humano, esqueceu de proporcionar algo tão importante quanto: propósito. Na falta dele, sobra só o tempo — e a terrível exigência de preenchê-lo. Ou então, sofrer as consequências de ficar pensando sobre o vazio de uma existência sem razões de ser.
Quando olhamos a lista dos livros mais vendidos, outra novidade: os “Bobbie Goods”, livros para colorir, com imagens “fofas” de ursos, cachorros, gatos, que permitem ocupar o imenso tempo escapando da náusea, concentrando-se nos lápis e canetinhas coloridas, dando contorno e preenchendo as figuras sorridentes com o máximo de capricho. Enquanto isso, o legado cultural do Ocidente — objeto principal da existência das escolas — ou mesmo a socialização, por meio de brincadeiras conjuntas, a atividade física e o aprendizado de regras e da resiliência, ficam deixados de lado, esquecidos pelas crianças que se escondem em suas bolhas com seus “Bobbie Goods”, substitutos oportunistas da proibição do celular no espaço escolar.
Mas não são só as crianças que se empolgam com a novidade escapista. Os adultos também invadem as livrarias — pobres dos livros clássicos, esquecidos nas prateleiras à espera de criticidade e complexidade — para disputar com as crianças os últimos lançamentos dessa invenção milionária da designer norte-americana Abbie Goveia. Isso, e mais academia, e mais shopping, além das horas e horas girando em falso nas redes sociais, rindo dos cortes de stand-up, das fofocas sobre os artistas, dos tutoriais de maquiagem ou de como combinar o cinto com a meia. E, mesmo assim, o tempo não passa. Não na velocidade que nossa impossibilidade de dotá-lo de sentido permite. Aí, então, temos os remédios…
O planeta vive urgências que passam ao largo da agenda do cidadão comum. É como se todas essas pessoas vivessem em uma dimensão paralela, separadas do mundo real por uma grande parede de vidro translúcido e que, por isso, não conseguem ver o desastre que se forma sobre suas cabeças — e, principalmente, sobre a cabeça da futura geração. Indiferentes a tudo isso, buscam apenas o conforto momentâneo, nesses roteiros de fuga, para tentar diminuir o sofrimento de uma vida sem sentido, sem propósito.
Não é à toa, inclusive, que as soluções místicas, medievais, também voltaram com força total. É a outra face da alienação: ou afundar-se no desenho de ursinho ou na esteira da academia com música no talo, ou subir a montanha em um simulacro de obstáculo a ser ultrapassado para, aí sim, conseguir enxergar algo que mudará sua vida. Quimera.
Como lembrou Platão, o mundo da doxa em que vivemos só pode ser superado pelo esforço da Razão. E, como disse seu discípulo mais famoso, Aristóteles, a felicidade é a realização de nossa potência racional — o que só é possível com o exercício de uma vida voltada a um fim, que é o encontro consigo mesmo, condição fundamental para poder entender o mundo à nossa volta e contemplá-lo em toda a sua plenitude.
Ou então, Bobbie Goods neles.
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
E-mail: danielhortenciodemedeiros@gmail.com
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