A jornalista Eleni Gritzapis e o convidado Carlos Nobre gravando para o greenTalks – Imagem: Divulgação/Canta
Por – Eleni Gritzapis, especial para Neo Mondo
Nesta primeira parte da entrevista, Carlos Nobre alerta que corremos o risco de perder a Amazônia, grande parte do Cerrado virar Caatinga e uma parte significativa da Caatinga vai virar semideserto se a temperatura média da Terra seguir aumentando
Em todos os episódios, trazemos para vocês convidados que são referência em sustentabilidade. Este programa, no entanto, é mais do que especial porque recebemos no greenTalks uma referência mundial em estudos sobre mudanças climáticas e que recentemente foi nomeado o 1º brasileiro “guardião planetário”, novo integrante do grupo Planetary Guardians: o cientista Carlos Nobre. A entrevista é tão rica e cheia de aprendizados que a dividimos em duas partes, para melhor aproveitamento e reflexão.
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O currículo de Carlos Nobre é impressionante: foi pesquisador no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) por mais de 30 anos, onde ajudou a estabelecer um moderno centro de pesquisa em previsão de tempo e clima. Em 2008, criou o Centro de Ciência do Sistema Terrestre do INPE. Foi Secretário Nacional de Políticas de C&T do Ministério da Ciência e Tecnologia, onde criou, em 2011, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN).
Publicou ou coautorou mais de 200 trabalhos científicos. Serviu em diversos comitês científicos internacionais e atualmente é membro da Academia Brasileira de Ciências, da Academia Mundial de Ciências e membro estrangeiro da Academia Nacional de Ciências dos EUA. Carlos Nobre participou ainda de vários relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Confira os principais trechos da primeira parte da entrevista e não deixe de assisti-la na íntegra no link abaixo, ou no canal do Instituto Neo Mondo ou da Green4T no Youtube e também no Spotify:
O greenTaks é uma iniciativa pioneira entre a green4T e NEO MONDO para discutir o papel fundamental da tecnologia na promoção de um futuro mais sustentável.
O greenTaks é uma iniciativa pioneira entre a green4T e NEO MONDO para discutir o papel fundamental da tecnologia na promoção de um futuro mais sustentável.
Professor Carlos Nobre, infelizmente, ainda vemos bastante divergência no entendimento das questões climáticas e na relação clima e negócios, quando muitos ainda tem crença de que as mudanças climáticas são um alarmismo. Os estudos científicos mostram que os riscos climáticos vão afetar todas as empresas, todas as pessoas, todos os negócios. Para empresas ou setores que ainda tem esta visão, quais são os sinais que estão sendo ignorados ou negligenciados ou minimizados, na sua visão?
(Carlos Nobre) – Isso é uma coisa muito difícil até de entender. Mais de 70% das emissões são pela queima de combustíveis fósseis, petróleo, carvão e gás natural. Aí alguém pergunta, o setor de energia que vem de combustíveis fósseis é negacionista? Não, o único problema é que eles querem uma transição para energia renovável muito devagar. Nós precisamos acelerá-la.
Por incrível que pareça, o setor mais negacionista de mudança climática em todo o mundo, não só no Brasil, é o agronegócio, os grandes produtores agrícolas. Isso acontece nos Estados Unidos, no Brasil, na Argentina, em todos os países europeus. Então, isso é uma surpresa, porque quando olhamos as emissões dos usos da terra, desmatamento representa 10% das emissões globais e agricultura e pecuária, 13%. Somados representam 23% das emissões globais.
E um dos setores que mais está sofrendo com os extremos climáticos é o setor da agricultura e, mesmo assim, é negacionista. É algo muito interessante. Quando olhamos o perfil de negacionistas, eles normalmente são grupos associados a políticos populistas, tanto de extrema direita como de extrema esquerda, são os dois extremos políticos. Esses são os negacionistas no mundo inteiro e, de forma geral, o agronegócio nesses países esteve associado com o populismo de extrema direita.
Vamos dar um exemplo aqui difícil de entender: no ano passado, o presidente Macron, da França, quis passar uma lei que aumentava o preço dos combustíveis fósseis para reduzir as emissões de CO2. Detalhe que a França já é um país com menos emissões. O que aconteceu? Todo o setor do agronegócio francês entrou em greve por semanas, parou tudo e o presidente voltou atrás.
Por outro lado, a ciência da agricultura e da pecuária, a Embrapa e várias universidades já desenvolveram uma agricultura e pecuária muito mais resiliente, a chamada agricultura e pecuária regenerativas. Elas emitem muito menos gás de efeito estufa e, principalmente, são muito mais resilientes aos eventos extremos. Além disso, são muito mais produtivas.
Sobre a transição, o Congresso aprovou, em 2010, o Plano de Agricultura de Baixo Carbono, chamado Plano ABC, com um enorme financiamento. Cerca de 14 anos depois, aproximadamente 11% das fazendas pecuárias migraram para este modelo, mesmo ela sendo mais produtiva, mais lucrativa, mais resiliente aos extremos climáticos.
É lógico que o Brasil, por outro lado, temos um lado mais positivo e mais geral, especialmente quando comparamos com os países que mais emitem, que são China, Estados Unidos, Índia e Rússia. Neles, acima de 75% das emissões é queima de combustíveis fósseis. No Brasil, é da ordem de 20%.
Conte-nos então um pouco do cenário geral do Brasil.
(Carlos Nobre) – O Brasil tem o plano de atingir zero desmatamento até 2030. Se nós fizermos isso, reduzimos 50% das emissões. Felizmente, tivemos uma grande redução dos desmatamentos da Amazônia, da Mata Atlântica em 2023, 2024 e, felizmente, nos últimos cinco meses, até mesmo no Cerrado.
Há incentivos para a transição energética, um pouco mais lento do que esperado, mas também vamos na direção da agricultura e da pecuária regenerativas. O Brasil está começando também grandes projetos de restauração florestal. Na COP 28, o País lançou o projeto Arco da Restauração e eu tenho um pouco a ver com esta iniciativa porque sou membro do Conselho de Administração do BNDES e co-presidente do Painel Científico para a Amazônia.
Lançamos um estudo chamado Arcos da Restauração Florestal na COP 27, no Egito, porque os dados de satélites criaram os arcos do desmatamento. E mostramos que a área que abrange o sul da Amazônia, no Brasil e Bolívia, em torno de 2,3 milhões de quilômetros quadrados e ao longo dos Andes, Colômbia, Equador e Peru, infelizmente tem um grande desmatamento. Essa é a região com a maior biodiversidade do planeta.
O BNDES gostou muito desse estudo e, no ano passado, na COP 28, lançamos o Arco da Restauração Brasileira. É uma área de quase o tamanho do estado de São Paulo, 240 mil quilômetros quadrados de restauração, de todo o sul da Amazônia, com 6.060.000 km² até 2030 e outros 180.000 km² até 2050. Isso vai ajudar muito a salvar a Amazônia, vai remover dezenas de bilhões de toneladas de gás carbônico.
O Brasil realmente tem toda a condição de ser o primeiro país do mundo a zerar as emissões!
Quero falar do painel científico para a Amazônia, em que o senhor é co-presidente. Trata-se da primeira iniciativa regional científica de alto nível dedicada à Amazônia, composto por mais de 280 cientistas, responsáveis por elaborar o Relatório de Avaliação da Amazônia 2021. Aliás, convido todos a visitarem o site. No vídeo de apresentação, tem uma mensagem muito bonita sua que faço questão de ler aqui: “Nossa mensagem aos líderes políticos é que não há tempo a perder. Se a Amazônia deseja sobreviver, devemos mostrar como ela pode ser transformada para gerar benefícios econômicos e ambientais que resultariam de colaborações entre cientistas, detentores de conhecimento indígena, seus líderes e governos.” O senhor pode nos contar sobre o trabalho do Painel?
(Carlos Nobre) – Vocês se lembram que em 2019 teve uma explosão de incêndios na Amazônia que aumentou muito o desmatamento? Muita gente começou a ficar muito preocupada e a ONU resolveu criar um painel como se fosse o IPCC, mas só voltado para a Amazônia. Fui então convidado pelo professor Jeffrey Sachs, da Universidade de Columbia, nos EUA, para ser co-presidente.
Inicialmente, tínhamos 85 membros cientistas, e como você falou, hoje já somos 288, 13 cientistas indígenas, 46 mulheres cientistas. A primeira parte da iniciativa foi feita virtualmente por causa da Covid, e na COP26, em 2021, em Glasgow, na Escócia, lançamos o primeiro relatório de mil e trezentas páginas. A partir daí começamos a realizar estudos para buscar soluções baseadas na natureza, que é, primeiro, uma governança de todos os países amazônicos. Felizmente, tivemos a cúpula dos países amazônicos em agosto de 2023, em Belém (PA), em que quase todos os países amazônicos assumiram o compromisso de zerar o desmatamento, a degradação e o fogo para então partir para um grande projeto de restauração florestal.
Todo o sul da Amazônia está muito perto do ponto de não retorno e pretendemos criar uma bioeconomia baseada na sócio-biodiversidade, com centenas de produtos da biodiversidade, mantendo a floresta em pé. Vamos desenvolver uma nova bioeconomia para a Amazônia, mas com os produtos da floresta.
Os indígenas estão há quase 14 mil anos na Amazônia, há cinco ou oito mil anos começaram a domesticar plantas, como, por exemplo, a mandioca, açaí, castanho, cacau, buriti, cupuaçu etc. Domesticaram mais de cinquenta árvores e começaram a desenvolver o que hoje chamamos de sistemas agroflorestais. Eles não desmatavam nada, é só ter uma densidade maior dessas árvores.
Temos uma visão de que o Brasil é um país verde, com natureza e biodiversidade abundantes. Mas com a mudança climática, o Brasil será um dos que mais irão sofrer, já estamos no mapa de risco. Recentemente, o senhor afirmou em uma entrevista à CNN que todos os biomas estão em risco. O senhor pode nos dar mais detalhes sobre esta afirmação? Qual seria o ponto de não retorno?
(Carlos Nobre) – Fui o primeiro cientista que, há quase 30 anos, realizou um estudo que perguntava: e se o desmatamento ficar muito grande, o que vai acontecer? Naquela época, o desmatamento era 7%. Por meio de modelos matemáticos do clima, mostramos que, se desmatar muito a Amazônia, todo o sul da Amazônia se transformaria em um clima do cerrado, causando a “savanização” da floresta.
Aquilo era uma projeção, mas já está acontecendo, estamos à beira do ponto do não retorno da Amazônia. Todo o sul da Amazônia, do Atlântico até a Bolívia, até pegando um pedaço da Colômbia agora, a estação seca já aumentou, uma semana maior por década. Se continuar assim, daqui duas a três décadas, ela chegará a seis meses, a floresta já está se auto degradando. No sudeste, sul do Pará e norte do Mato Grosso, a floresta virou fonte de carbono.
A Amazônia, nos anos 90, chegou a remover de 1,5 até 2 bilhões de toneladas de gás carbônico. No entanto, no sudeste da Amazônia, a floresta ali já virou fonte de carbono. A mortalidade das árvores aumentou, ela está se degradando. Isso é muito perigoso! Além disso, a estação seca está não só mais longa, mas ela está 20% mais seca e de 2º a 3º C mais quentes.
Antes, a Amazônia tinha uma seca mais forte a cada 20 anos, associada ao fenômeno no Oceano Pacífico Equatorial chamado El Nino. Agora, ela está tendo duas secas por década (2005, 2010, 2015, 2016 e 2023, 2024, a maior seca do registro histórico). Elas fazem a estação seca ficar mais longa, mais quente.
A Amazônia evoluiu em dezenas de milhões de anos de uma forma fantástica. É a única floresta do mundo, e pouca gente sabe disso, que recicla água muito eficientemente. Como? A chuva é absorvida pelo solo, devido a uma evolução ecológica e biológica de dezenas de milhões de anos, não permitindo que a água corra direto para os rios. Durante a estação seca, têm várias árvores que possuem raízes muito profundas, de 7 até 12 metros de profundidade, que puxam a água, liberam a água na superfície, não só nas folhas. É uma evolução ecológica fantástica e essa reciclagem é tão eficiente! Durante a estação seca, a floresta recicla de 4 a 4,5 de litros de água por metro quadrado por dia. A pastagem recicla de 1 a 1,5 de litros de água apenas. É isso que está fazendo também a estação seca ficar mais longa, você tem muito menos água.
Em outros estudos que nós fizemos, chegamos à conclusão de que, se o desmatamento passar de 25% e se o aquecimento global passar de 2,5º C, passamos do ponto de não retorno. E nós estamos com 18% de desmatamento na Amazônia e, infelizmente, no ano passado, já chegamos a um grau e meio centígrado de aumento de temperatura.
Além disso, o rio Amazonas joga para o Atlântico 18 milhões de toneladas de vapor d’água por dia e os chamados rios voadores jogam 17 milhões de toneladas de vapor d’água por dia para o sul. Isso alimenta o sistema de chuva do Cerrado. E 15% do vapor d’água do sudeste vem de lá e todo esse vapor d’água chega lá no sul do Brasil, Uruguai, Paraguai, centro-leste da Argentina. A ciência sabe bem isso.
Qual é a preocupação? Como está muito desmatado o sul da Amazônia, vem outro problema. Estudos da professora Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília, estão mostrando que o Cerrado também pode passar do ponto de não retorno. A estação seca está ficando mais longa, já é de seis meses, e está ficando mais quente. Com menos chuva, se perdermos a floresta amazônica, grande parte do Cerrado vai virar Caatinga. É uma enorme preocupação.
Nos últimos 20 anos, a Caatinga do Nordeste já subiu para o Cerrado cerca de 200 mil quilômetros ao oeste da Bahia, Maranhão, Piauí, uma área quase do tamanho da cidade de São Paulo. E mais: os estudos mostram que não só a Caatinga se expandiu para o Cerrado, mas o norte da Bahia já começou a ter a chuva de semideserto. Isso tem muito a ver com aquecimento global, mas tem a ver com desmatamento. Olha o risco que nós estamos correndo: perder a Amazônia, grande parte do Cerrado virar Caatinga e uma grande parte da Caatinga virar semideserto. É um caos!
Vamos tentar ser um pouco positivo. Em linhas gerais, ainda dá para combater a emergência climática? Ou seja, se as metas de emissões forem atingidas conforme o Acordo de Paris, é possível que o clima da Terra volte ao normal? Em quanto tempo os estudos mostram que o clima da Terra se regeneraria se tudo corresse bem?
(Carlos Nobre) – Infelizmente, desde junho do ano passado, já chegamos pela primeira vez no aumento de 1,5º C. Para reverter, nós temos que imaginar qualquer coisa na escala de séculos.
O que a ciência tem mostrado? Teríamos que rapidamente diminuir as emissões e aí passar a segunda metade desse século removendo de 5 a 6 bilhões de toneladas de gás carbônico por ano da atmosfera. Ou seja, zerar as emissões e passar a remover CO2. Se fizermos isso, chegaríamos no final do século a 1º C, o que é aceitável, pois traz um impacto pequeno na biodiversidade, na nossa saúde etc.
Mas isso está ficando quase impossível. O principal gás do efeito estufa, do aquecimento global de ação humana, é o gás carbônico e ele fica, em média, 150 anos na atmosfera. Ou seja, 15% do gás carbônico que jogamos hoje, vai estar aqui daqui mil anos.
Se reduzirmos rapidamente as emissões, zeramos o CO2? Não. Os estudos mostram que teríamos que restaurar de 6 a 7 milhões de quilômetros quadrados dos biomas naturais de todo o planeta, principalmente as florestas.
Estudos do IPCC mostraram o enorme risco do aumento de 2º C da temperatura, com a extinção de praticamente 100% de todos os recifes de corais. E os recifes de corais mantém de 18 a 25% da biodiversidade aquática. Aí olhamos os recifes de corais na Austrália, que tem 2.300 quilômetros, estão ficando brancos. Saiu um estudo na costa aqui de Alagoas, que tem um belíssimo lugar com recife de corais, que também estão ficando brancos.
E o que acontece se atingir 2,5º C de aumento de temperatura? Perdemos a Amazônia, no mínimo 50% da floresta. Além disso, existem mais de 20 pontos de não retorno como consequência, alguns exemplos: branqueamento dos recifes de corais, desaparecimento de um monte de outras espécies, descongelamento do solo da Sibéria, no norte do Canadá e Alaska, uma área conhecida como Permafrost. Ele tem dezenas e dezenas de milhões de anos, tem uma grande quantidade de CO2 e metano ali armazenados e já começou a descongelar. Se a chegarmos a 2º C, a gente vai perder mais de 200 bilhões de toneladas do Permafrost. E se perdemos a Amazônia e o Permafrost, não abaixamos de 2º C de jeito nenhum.
Eu só falei aqui de dois pontos de não retorno, mas tem um monte de outros. O principal, mais perigoso, é que tem uma gigantesca quantidade de metano no fundo dos oceanos, principalmente do Ártico. Está lá há centenas de milhões de anos. Se o Ártico aquece 3º C, começa a liberar este metano. E se isso acontecer, nós podemos passar de 4º C em 2100 e chegar até a 10º C em 2150. Isso torna a Terra inabitável. Por quê? Porque nós, homo sapiens, evoluímos 200, 250 mil anos e nunca a temperatura foi alta.
Para perdermos o calor de dentro do corpo, precisamos transpirar. Quando a temperatura está acima de 35 graus, nós jogamos calor para fora. Quando o ar está mais quente, ele que joga calor para nós. Como é nossa evolução ecológica e biológica? Transpiração, a água vem, evapora, pega a energia da pele e vai baixando a temperatura. Com este cenário de aumento de 4º C de temperatura, um idoso, um bebê, uma pessoa doente sobrevive meia hora sob estresse térmico. E um adulto saudável sobrevive duas horas, o planeta se torna inabitável.
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