Escrito por Neo Mondo | 16 de junho de 2025
Retrato de Michel Eyquem de Montaigne (1533-92)- Foto: Divulgação
ARTIGO
Os artigos não representam necessariamente a posição de NEO MONDO e são de total responsabilidade de seus autores. Proibido reproduzir o conteúdo sem prévia autorização
Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
Montaigne viveu em um mundo em ebulição: guerras religiosas, inquisições, julgamentos sumários. Um tempo em que dogmas valiam mais do que provas — e discordar podia custar a cabeça ou a alma. Foi nesse cenário que ele se sentou para escrever seus Ensaios, espécie de autobiografia da mente: um convite ao ceticismo e ao exercício constante da dúvida. Entre os textos, um parece, à primeira vista, menor: o ensaio “Dos Coxos”, no qual discute acusações de feitiçaria contra pessoas com deformidades físicas. Mas o que se revela ali é um tratado sobre a fragilidade dos nossos julgamentos e o risco permanente das certezas fáceis.
Leia também: Perigo, risco e dano:
Leia também: A era do desrespeito
A surpresa é que, séculos depois, a neurociência cognitiva parece dar razão ao velho pensador francês. Com suas pesquisas sobre os chamados “vieses cognitivos” — atalhos mentais que usamos para lidar com o excesso de informação —, os neurocientistas mostram que nossa mente frequentemente nos engana. Julgamos não com base em fatos, mas em crenças anteriores. O que era intuição filosófica em Montaigne virou dado de laboratório: nossa razão é falha, seletiva, emocional.
No caso do viés de confirmação, por exemplo, tendemos a buscar e valorizar aquilo que confirma o que já acreditamos. Montaigne observou esse fenômeno nos julgamentos por feitiçaria: uma vez que um “coxo” era tido como suspeito, qualquer desgraça ocorrida na aldeia era automaticamente associada a ele. E tudo que pudesse inocentá-lo era ignorado. O julgamento já começava com a sentença decidida.
Outro viés, o da disponibilidade, ajuda a entender por que certas histórias — geralmente as mais absurdas — permanecem vivas no imaginário coletivo. No século XVI, eram os relatos de bruxas voando ou provocando tempestades com um olhar. Hoje, são as fake news, os vídeos fora de contexto, os comentários “virais” com mais emoção do que verdade. A lógica é a mesma: quanto mais chocante ou repetida for a informação, mais verdadeira ela nos parece.
E há ainda o viés de ancoragem: a tendência de basear decisões na primeira informação recebida, mesmo que irrelevante. Para Montaigne, isso explicava por que a aparência de um acusado — sua cor, sua condição física, sua reputação — pesava mais do que qualquer evidência. Uma vez rotulado, o sujeito era visto apenas sob aquele filtro.
O que Montaigne oferece — e que segue atual — é uma ética do pensamento. Diante da incerteza, não devemos dobrar o tom nem erguer a voz. Devemos duvidar. Pensar com prudência, considerar o outro lado, admitir que podemos estar errados. Em tempos de polarização acelerada e verdades fabricadas em massa, a humildade intelectual deixou de ser virtude acadêmica para se tornar ferramenta de sobrevivência pública.
O velho humanista não tinha ressonância magnética nem banco de dados. Mas tinha algo raro: escutava o mundo com desconfiança — e escutava a si mesmo com ainda mais cautela. Talvez esse seja o ensinamento mais valioso que a neurociência apenas confirma: pensar dá trabalho. Mas não pensar — ou pensar mal — custa muito mais caro.
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
E-mail: danielhortenciodemedeiros@gmail.com
Instagram: @profdanielmedeiros
Educação pelo Clima: Green Skills podem transformar o futuro dos jovens?
Fundação J.L. Setúbal propõe novo modelo de saúde infantil